Fluxo desumano: a escravidão no Rio de Janeiro

Caio Jacintho, Judite Cypreste, Patrícia Catandi

18

de

November

de

2022

Localizado na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, está o maior porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas, o Cais do Valongo. Com cerca de 350 metros de comprimento, a estimativa é de que cerca de um milhão de escravizados tenham chegado ao Rio pelo ancoradouro.

Criado em 1774, como tentativa de esconder a prática aos visitantes da cidade que desembarcavam pelo porto da Praça XV, o lugar sofreu duas tentativas de apagamento. Em 1843, 12 anos após sua desativação, foi aterrado para receber a Princesa das Duas Sicílias e Princesa de Bourbon-Anjou, Teresa Cristina, esposa do Imperador Dom Pedro II.

Em 1911, mais um aterramento — e tentativa de apagamento da história — aconteceu, com as reformas urbanísticas da cidade promovidas pelo então prefeito Bento Ribeiro.

E é, para contar a história dos africanos escravizados no Rio de Janeiro e no Brasil, que o Escritório de Dados reuniu e analisou informações sobre a maior migração forçada da história da humanidade, que retirou milhares de pessoas negras de seus países para a escravidão.

RIO DE JANEIRO RECEBEU 17% DE TODOS OS ESCRAVIZADOS

A análise foi feita com dados do projeto Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico do site SlaveVoyages, uma iniciativa colaborativa que compila registros dos maiores tráficos de escravos da história. A base de dados é uma das mais importantes e utilizadas por pesquisadores sobre o assunto em todo o mundo.

Segundo análise, a estimativa é de que o Rio recebeu 17% de todos os africanos escravizados entre os séculos XVI a XIX, período em que a escravidão ainda era prática legalizada no país.

Ana Londe, pesquisadora em economia política e escravidão (UFMG), explica que o Rio de Janeiro se tornou ponto central do tráfico por estar em uma região estratégica para que estas pessoas pudessem ser enviadas para outros estados. Sua localização próxima a Minas Gerais, por exemplo, fazia com que esta força de trabalho pudesse ser direcionada a atividades agrícolas e também a extração de minério no estado.

"Por estar próximo a Minas Gerais, por exemplo, essas pessoas eram enviadas como força de trabalho para trabalhar principalmente nos cafezais do estado", explica.

(A TENTATIVA DE) APAGAMENTO DE ORIGENS

Em 1815, motivados pelas ideias do Iluminismo e também por interesses comerciais no mercado internacional de açúcar, os ingleses anunciaram que o tráfico só seria permitido em locais ao sul da Linha do Equador.

Londe conta que mesmo com a regra, o tráfico não parou. "Como forma de contornar a lei, traficantes começaram a trazer africanos da Enseada de Benin, lugar pouco acima da linha imaginária. E é por isso que temos tantas pessoas que vieram desta região nos dados", afirma.

Um dos últimos países a abolir a escravidão, o Brasil, por meio do Rio de Janeiro, foi um dos únicos lugares do mundo onde a escravidão ainda foi uma prática por muito anos. Estima-se que o Brasil tenha recebido ao menos 3,3 milhões de africanos escravizados.

Foi apenas em 2011, durante as escavações realizadas como parte das obras de revitalização da zona portuária, que o ancoradouro foi descoberto. Até então, a sua localização exata era incerta na cidade.

Para a historiadora especialista em Educação das Relações Étnico Raciais e pesquisadora do museu virtual Rio Memórias, Gabriela Montoni, a importância da história do Cais vai além de registros sobre a cidade.

"Saber sobre a história é também conhecer a força das pessoas que construíram essa cidade e todo o Brasil", diz a pesquisadora.

Pela sua importância histórica, o Cais do Valongo foi declarado como patrimônio da humanidade pela Unesco, em 2017. "Precisamos recuperar o que ficou perdido", conclui Montoni.

Para saber mais sobre a história do Cais do Valongo e de outros lugares da cidade, o Escritório de Dados recomenda o podcast Rio Memórias. Você pode ouvir os episódios clicando aqui ou no seu agregador favorito.